O Direito Fundamental e o acesso à saúde

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por João Lucas M. S. Heckert – OAB/SC 48.087

1 A EFICÁCIA JURÍDICA DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL

Os Direitos Fundamentais possuem origem histórica e são resultado de uma construção social iniciada desde os primórdios da humanidade e da organização social em sociedade, muito embora tenham sido positivados inicialmente apenas após o fim do século XVIII, como fruto de movimentos de luta de classes e busca de melhorias sociais que desencadearam as Revoluções Francesa e Estadunidense.

Diante das referidas lutas, surgem, em princípio, os direitos sociais chamados “de primeira dimensão”, que têm por objetivo tutelar os limites da atuação estatal em relação à vida do indivíduo, que precisa de autonomia para sua autodeterminação, principalmente no que tange às suas liberdades.

Por outro lado, com a construção social percebeu-se que não seria necessário apenas impor ao Estado que se abstivesse da construção da vida do indivíduo, até mesmo porque tal concepção contraria a filosofia contratualista por meio da qual tem-se a intervenção estatal como forma de garantir o amplo e bom convívio social, o que torna o Estado um facilitador da vida.

Dentro desta temática, verifica-se o aparecimento dos direitos fundamentais de segunda dimensão, que já não exigem a inércia, mas sim a força ativa – e se necessária, coercitiva – da atividade estatal para a sua plena realização.

Como exemplo forte da necessária atividade estatal impositiva está o Direito Fundamental à Saúde, que no Brasil possui características peculiares quando relacionado ao direito à saúde de outros estados-nações.

Tal direito encontra-se positivado pela Constituição de 1988, que em seu art. 6º e art. 196, garante que a saúde é um direito social. A saúde aparece novamente na disciplina constitucional quando o constituinte tratou do cálculo do salário mínimo, no art. 7º, IV, de modo que se este não puder proporcionar a satisfação da necessidade de uma saúde básica, não atenderá ao seu fim social e constitucional.

A competência para os cuidados da saúde foi tratada como comum entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, de modo que por força do art. 23, II da CRFB/88 (e novamente no art. 30, VII) todos os níveis da unidade federativa são igualmente obrigados a proporcionar saúde aos jurisdicionados, legislando também em concorrência a respeito do tema (excluindo-se apenas o Município da possibilidade legislativa a respeito de saúde como um todo, porém sem deixar de lado os casos em que seja necessário tutelar situações ligadas ao tema dentro da competência de seus interesses locais – art. 30, I da CRFB/88).

Saúde era tão importante e tão indispensável ao constituinte que inclusive foi inserida como um dos problemas sociais que justificaria uma intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal (art. 34, VII, “e”) após a Emenda Constitucional nº 29/2000; bem como é prevista o mesmo caso de intervenção dos Estados nos Municípios (art. 35, III). Frise-se que este texto foi novamente repetido para as Constituições Estaduais, tal qual a de Santa Catarina, que traz a previsão no art. 11, III.

A verdade é que a saúde possui, em todo o texto constitucional, verdadeira proteção, direta ou indiretamente, tratando-se até mesmo os profissionais da área em caráter diferenciado para fins previdenciários e trabalhistas. Deste modo, tem-se que a sua proteção normativa é amplamente difundida em matéria de legislação.

O direito à saúde, portanto, visto de um ponto de vista teórico e jurídico, está enraizado nos fundamentos das relações sociais, impondo ao Estado Brasileiro como um todo uma forma de garantir a sua aplicação social da forma mais ampla possível.

Vê-se que o Estado Brasileiro levou tão a sério esta incumbência de cuidado da saúde que criou no âmbito do Brasil o Sistema Único de Saúde como matéria constitucionalmente assegurada, objetivando garantir a todos, e principalmente para a população de baixa renda (como se infere da exegese do art. 199 da CRFB/88), um livre acesso aos serviços públicos.

Tudo isto se deve, provavelmente, porque a saúde está sempre relacionada diretamente com a ideia prática de dignidade da pessoa humana, e a positividade (muitas vezes considerada exagerada) da Constituição para com os Direitos e Garantias fundamentais não poderia deixar de esculpir e incutir no direito brasileiro a necessidade de falar-se sobre esta tão importante temática para o cidadão.

Sendo assim, o “tema saúde” e o seu acesso pelo cidadão, o que é parte da seguridade social e garantido pelo constituinte com amplitude de recursos, inclusive em regimes especiais de captação de tributação, é juridicamente eficaz desde o primórdio do ordenamento jurídico pós-1988, e também dotado de normas infraconstitucionais que lhe dão eficácia jurídica, e nas quais poderão buscar a contento o amparo ao cidadão brasileiro.

2 A EFICÁCIA SOCIAL DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL

É evidente que a eficácia jurídica das normas não conduz, diretamente, à sua eficácia social, uma vez que a teoria nem sempre coaduna com a prática. A eficácia social é, de fato, a prática do cotidiano legal, e coloca em teste os textos forjados pelo constituinte e pelo legislador, de modo a garantir – ou não – sua aprovação pela sociedade em geral na medida em que, quanto melhor a norma, melhor será sua implementação.

De fato, para o contento do apelo social, a norma não basta apenas ser bem redigida, mas para ser considerada “boa” precisa ir além dos aspectos gramáticos e ortográficos, passar pelo processo legislativo incólume, observar estritamente o regramento da Lei Complementar nº 95/98, e sujeitar-se à apreciação popular, afinal, é o povo o destinatário final do direito.

Ocorre que, no Brasil, o direito à saúde, amplamente previsto na matéria constitucional e infraconstitucional, possui normas bem redigidas, com ortografia impecável, mas sem efetividade social, impossibilitando a aplicação plena das regras contidas no ordenamento jurídico.

Isso significa dizer que o Estado têm falhado na sua típica função de tutelar e resguardar, por ações e políticas públicas, não a saúde em si dos brasileiros, mas o acesso dos cidadãos ao sistema que possibilita sua plena saúde – do corpo e da mente (a Constituição não faz distinção entre uma e outra).

O direito à saúde deve ser adotado, na visão do Supremo Tribunal Federal, de forma a garantir a tutela jurisdicional do mínimo existencial. Ou seja, para o STF, a saúde está intimamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, e o Poder Judiciário tem tentado com todo o possível garantir a efetiva aplicação das normas relacionadas a este Direito Social através de decisões que tentam tutelar o direito ao mínimo existenciaL (MELLO, 2018).

Para muitos, diante da ineficiência das políticas públicas na tutela dos direitos e garantias fundamentais, o Estado (como um grande ser dotado de braços e meios para atingir um único objetivo – a boa aplicação das Leis) utiliza-se do Poder Judiciário com a finalidade de alcançar aos cidadãos a tutela do direito à saúde (MELLO, 2018).

Nos últimos julgamentos do STF, que servem de reflexo para toda uma sociedade ávida por decisões judiciais que digam aos gestores públicos o que devem e o que podem fazer ou deixar de fazer, tem-se visto que a aplicação de normas que busquem a efetivação social do direito à saúde só tem sido plenamente observada diante de decisões judiciais, no que o Poder Judiciário não pode extrapolar seus limites de atuação.

Para o Ministro Marco Aurélio Mello (1999) a atuação do Judiciário é importante para garantir a referida eficácia a fim de promover o acesso à saúde e sem tal relação não haverá a real existência de Direito Social, sendo que agora é:

[…] hora de atenta-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínimo de conforto suficiente a atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem. (AI 232.469/RS, decisão monocrática em 12/12/1998, DJ 23/02/1999).

É preciso ressaltar, ainda, que para proporcionar o Direito Fundamental à saúde do cidadão brasileiro, ao Estado não é suficiente garantir o acesso ao SUS, e nem a eficácia social das normas exclusivamente relacionadas a este Direito, mas também o acesso à uma vida digna, que propicie, como já dito, a saúde mental e do corpo.

Deste modo, tem-se que a plena saúde de alguém não passa de uma decorrência de uma série de outros aspectos que não apenas os investimentos e a realização de políticas públicas relacionadas à hospitais, clínicas, formação de profissionais da área, mas depende da atuação estatal em amplo sentido, tal qual investimentos em saneamento, educação, tratamento de água e moradia digna.

Diante deste aspecto, e levando em consideração os textos constitucionais, é possível perceber que a eficácia plena e social de um Direito Fundamental (seja ele de primeira, segunda ou terceira dimensão) depende também da efetivação de outros direitos no plano prático.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988).

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI 232.469/RS, decisão monocrática em 12/12/1998, DJ 23/02/1999).

IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. 7ª ed. rev.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

MELLO, Marco Aurélio. Supremo e políticas públicas: entre direitos fundamentais e democracia. In A constituição entre o direito e a política: o futuro das instituições. 1ª ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2018.

SANTA CATARINA. Constituição do Estado de Santa Catarina.

por João Lucas M. S. Heckert – OAB/SC 48.087

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